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Sobral de São Miguel há 50 anos “por vontade do povo”

António Ramos tinha sete anos quando Sobral de São Miguel passou a ter a actual designação, há 50 anos. Andava na escola primária, onde a aprendizagem era acompanhada ao ritmo de “reguadas, pontapés, varadas” e no quadro de ardósia, a partir do dia 27 de Fevereiro de 1970, em vez de Sobral de Casegas, passou a escrever-se o novo nome. Ainda criança, esta foi a principal alteração que notou.

Maria Gaspar, 86 anos, ouviu a boa nova na missa, onde o padre fez o anúncio e “pelo povo” a notícia disseminou-se rapidamente, para satisfação geral da população. “Todo o povo estava de acordo e ai não, que não ficámos contentes. Nós não éramos de Casegas, tínhamos direito a outro nome”, recorda Lurdes Mendes, à beira dos 80 anos.

“Nós começámos logo a usar o nome. Ai se nos adaptámos. O São Miguel era a festa mais valente que cá se fazia, no último fim-de-semana de Setembro. São Miguel é o nosso padroeiro e o anterior nome não tinha jeito nenhum”, considera, despachada, Maria Gaspar, a meio da Rua do Vale, com o molho de grelos acabados de apanhar, ao lado do saco de batatas que vai preparar para o almoço.

Lurdes Mendes, que durante anos, como centenas, viu como caminho a emigração, viveu as dificuldades dos trabalhos do campo. Há meio século, moravam 1.500 pessoas no Sobral. Havia pedreiros, quem tirasse o sustento da actividade agrícola e quem se embrenhasse terra adentro, nas profundezas da mina. A antiga operária em França frisa que “a terra é someninha”. É difícil de amanhar, traduz, “mas é a nossa terra”. “Eu tenho uma perna de Casegas, a minha mãe é de lá, damo-nos bem com as pessoas, mas queríamos ter o nome da nossa terra”, recua Lurdes Mendes, junto ao lagar e ao antigo moinho da Ribeira do Vale.

Festa durou todo o dia

Sobral de São Miguel é paróquia desde o século XVIII e é administrativamente independente de Casegas desde 1888, mas manteve o topónimo Sobral de Casegas, o que não agradava à população. Em Novembro de 1969 a Junta de Freguesia, com a anuência da Câmara Municipal da Covilhã, solicitou ao Ministério do Interior a alteração do nome e “foi um processo muito rápido”, constata a actual autarca local, Sandra Ferreira. O decreto foi publicado a 27 de Fevereiro de 1970 e o momento foi celebrado na terra a 12 de Abril, com o epicentro das comemorações no Largo de São Miguel, então ainda em construção, “em frente ao estabelecimento do senhor José Silva Santos”, onde o momento foi perpetuado com uma placa alusiva.

À entrada da freguesia foi afixado um mármore com o novo nome da terra e o fornecedor ofereceu uma outra pedra para assinalar a efeméride no Largo de São Miguel, onde ainda se encontra. Segundo relatou o Notícias da Covilhã, o local “estava repleto de gente” a ouvir as palavras proferidas por José Pereira, professor aposentado da instrução primária, e o presidente da Junta de Freguesia, Daniel dos Santos.

A festa foi animada pela banda e pelo Grupo dos Zés P`reiras, que chegaram ao Cabecinho logo às 10h e percorreram as ruas da freguesia. A lápide comemorativa foi descerrada às 13h. Uma hora depois decorreu o almoço de confraternização e às 16h teve início o cortejo festivo, saído do Largo das Escolas, “com incorporação de Sobralense – Novas e Velhas, com as suas ofertas”. Os festejos só terminaram às 21h.

 

Decisão consensual

“Apesar de não haver grande rivalidade, era uma vontade do povo sobralense, porque as pessoas tinham a sensação de continuarem associadas a uma freguesia da qual foram anexa durante muitos anos. Tinham ganhado a independência religiosa, ainda antes da independência administrativa, e continuavam com aquela designação”, realça Sandra Ferreira, para quem a decisão, na localidade, “foi um alívio para toda a gente” e “sem resistência, consensual”, ao contrário do que aconteceu com a alteração do nome em freguesias vizinhas.

António Santos Pereira, 65 anos, na altura um jovem seminarista, hoje professor catedrático na Universidade da Beira Interior e historiador, “considera ter sido uma vontade de toda a aldeia, por uma questão de identidade”. “Foi um caso de um certo bairrismo identitário, para não se confundir com Casegas. É uma afirmação identitária, mas sem ferir. Não há notícia de hostilidade entre as populações, nem hoje”, acentua.

Para o notável sobralense, a mudança do nome “foi algo normal, espontâneo”, sem qualquer contestação popular ou institucional. Tratou-se de “reconhecer o que sempre foi”, “foi a adequação do nome à realidade”, vinca o historiador, que alude à existência da ermida de São Miguel anterior à criação da nacionalidade. “Sobral é Sobral desde há mil anos. Por volta do ano mil, a devoção a São Miguel era tremenda”, frisa António Santos Pereira. “Ainda antes da nacionalidade já Sobral era de São Miguel”, reforça o autor da futura monografia da localidade, que não tem documentos que lhe indiquem a data exacta do início da comunidade.

“Preferíamos ter um nome próprio”

Adelaide Luís era uma das 400 pessoas da terra emigradas em 1970. A sua certidão de nascimento dizia que era de Sobral de Casegas. Quando voltou de férias, Sobral de São Miguel já era uma nomenclatura utilizada pelas gentes da aldeia. Adelaide correspondia-se com uma amiga, que “foi servir para a casa de uma doutora, no Fundão”, e foi por carta que soube em França da novidade.

Antónia Domingos tem 82 anos durante os quais subiu picotos, cuidava das cabras, dos coelhos e da terra, com o rebanho de filhos atrás “ladeira arriba”; acarretou pasto para os bois de transporte da mina. As pernas já não têm a ligeireza de quando andava “ao minério” e tinha de ludibriar os guardas, “para granjear alguma coisa”, mas garante manter intacta a boa-disposição e aponta para a escadaria em xisto, antes com muita vida. A notícia da mudança do nome correu célere pelas ruas, onde ainda passava muita gente na Rota do Sal, e a satisfação foi geral.

Os cinco filhos nasceram em Sobral de Casegas, mas os nove netos e os cinco bisnetos, congratula-se, já têm no registo Sobral de São Miguel.

“Nós achávamos que era estarmos debaixo do domínio de Casegas”, explica Antónia que, querendo ir à Covilhã, tinha de se deslocar a pé para apanhar a camioneta na aldeia mais próxima, já que ainda não existia estrada para o Sobral. “Preferíamos ter um nome próprio, porque nos associavam a Casegas e nós não queríamos”, explica.

Por isso, assim que foi tomada a decisão, o nome foi rapidamente adoptado pela população, sem dissonâncias. “Nós começámos logo a dizer Sobral de São Miguel, com a força de querer mudar para o nome do nosso protector”, sublinha Antónia Domingues, olhos claros atrás dos óculos prateados.

“Era caso para deitar uns foguetes”

Alberto Pinto, 85 anos, boina basca a proteger a cabeça do sol de Inverno e a muleta como apoio, lembra outro problema: a confusão que se fazia com Casegas, nomeadamente com a correspondência, que por vezes ia parar à localidade errada e tinha de ser devolvida ao carteiro. O antigo pedreiro admite “uma certa rivalidade” com os vizinhos, “mas também convivência”, ou não existissem laços familiares entre tanta gente das duas freguesias.

Segundo Alberto Pinto, foi feito um abaixo-assinado para sustentar o pedido de alteração do nome. Passados 50 anos, parece-lhe motivo para festejar. “Era caso para deitar uns foguetes, mas agora pode-se logo atear o fogo”, graceja.

De passagem pela porta do Ferrolho, o café ponto de encontro da aldeia, passa Maria Diogo Marques, a equilibrar-se com a ajuda de uma bengala. Mulher de negro, chapéu por cima do lenço preto, vem do pedaço de terra que ainda cultiva, aos 91 anos. Falta-lhe a memória para recordar os pormenores desse momento em que o Sobral passou a chamar-se de outra forma, mas apressa-se a concordar com a alteração. “Eu sou de São Miguel, não sou de Casegas!”, vinca, aumentando o tom da voz.

 

“Damo-nos bem, mas existe essa picardia”

Pedro Santos tem tantos anos quantos o Sobral de São Miguel tem de designação oficial, uma coincidência e um simbolismo para um sobralense orgulhoso, agradado por o decreto de Fevereiro de 1970 ter vindo terminar com alguma confusão. “O nome Sobral de Casegas não me diz nada, nem tinha sentido. A aldeia era grande demais para estar ligada a outra terra”, considera.

Por norma, os sobralenses dão-se bem com os caseguenses, mas Pedro, 50 anos, como os da sua geração, foi regularmente sendo alvo de uma “picardia saudável” por parte dos vizinhos, com quem partilhava o autocarro para a escola. “Com Casegas havia às vezes alguma animosidade, por dizermos que nós éramos de lá, mas não somos. Confesso que me senti algumas vezes picado”, conta o carteiro de profissão.

Quase 20 anos mais novo, Daniel Marques descreve a mesma situação a caminho da escola. “Damo-nos bem, mas existe essa picardia, de dizerem que nós somos de Casegas. Os 50 anos deviam ser bem assinalados”, defende o jovem de 32 anos, actualmente emigrado.

Cláudia Pinto, 28 anos, tem conhecimento que o nome nem sempre foi o mesmo, mas nunca tinha reparado no motivo da placa que invoca a efeméride, e por onde passa tanta vez. Nunca ouviu qualquer voz dissonante sobre a mudança do nome. Todos preferem assim. “Foi uma espécie de reforço da nossa independência administrativa. É bom não termos o nosso nome associado a outra freguesia, mas para nós isso é um dado adquirido, já nascemos em Sobral de São Miguel”, acentua a empregada em marketing digital, em Lisboa.

Rivalidades só por causa dos limites geográficos

Sofia Sobreiro, 45 anos, nasceu e cresceu igualmente em Sobral de São Miguel e a menção a Casegas é apenas “uma curiosidade histórica”. Nunca deu conta de qualquer descontentamento com o nome escolhido. A administrativa, tesoureira na Junta de Freguesia, acentua as boas relações afectivas entre as duas localidades. As rivalidades são sobretudo institucionais, relacionadas com os limites das duas aldeias, ainda que as ligações sejam cordiais. Um assunto ainda por resolver.

António Santos Pereira nota que, no que toca ao progresso, ele chegou sempre depois ao Sobral, que ia ficando para segundo plano pelos decisores políticos. O historiador diz ter sido mais fácil mudar o nome do que trazer para a localidade a electricidade e a estrada.

“A mudança do nome não trouxe nenhuma vantagem, a não ser conforto espiritual”, sintetiza o professor catedrático natural da freguesia.

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