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O fiel amigo

Carlos Madaleno

Com a aproximação do Natal começa-nos a crescer água na boca ao pensar naquela posta do fiel amigo que vamos comer na consoada. Quer-se de cor amarela palha, desmanchando-se em lascas uniformes, bem regado com azeite das Beiras e acompanhado de batata farinhenta, e couve branca. Ah, não esqueçamos os bons néctares a região! É certo que outros vão preferir diferentes manjares como o peru, o polvo, ou o cação. É também verdade que alguns comerão “gato por lebre” ou, melhor dito, pichelim, zarbo e paloco, peixes da mesma família, por bacalhau, mas seja lá como for, este é já um símbolo nacional. Creio que ao lado do fado, do cante alentejano, dos bonecos de Estremoz e dos caretos de Podence deveria ser considerado pela UNESCO Património Imaterial da Humanidade. Bem que dizia Eça de Queirós, “sou em quase tudo um francês exceto num gosto depravado pelo fadinho e no justo amor do bacalhau de cebolada”. Assado, à Brás, espiritual, à Lagareiro, sem esquecer o célebre pastel, ou bolinho de bacalhau, os portugueses adoram-no. Dele aproveitam quase tudo, as cabeças, as línguas, os sames e o fígado. Este último tanto é fonte de óleo saudável quanto de traumas infantis, pelo menos para os que frequentaram o ensino primário durante o Estado-Novo. Imagino o que seria emborcar uma colher de óleo de fígado de bacalhau antes de cantarolar a tabuada dos nove. Bem, mas sejamos justos, foi esse o regime político que mais contribuiu para a mitificação do fiel amigo e, em 1958, Portugal era o primeiro produtor mundial de bacalhau salgado seco. Talvez, por isso, se tenha criado a anedota da receita de bacalhau à Salazar. Era cozido como o da consoada, apenas não levava azeite. Dizia o ditador que peixe gordo não necessitava de azeite e o magro não o merecia. Na verdade, a associação entre o bacalhau e a política não é nova. Depois de 1910, criou-se a expressão “vender bacalhau a pataco” para ilustrar a forma como os políticos apresentavam as promessas à fartazana. Diríamos nós hoje que vendiam as promessas ao “preço da chuva” se bem que também esta última expressão deve ser urgentemente revista, fruto das alterações climáticas. Na altura, tal como hoje, escusado será dizer, as promessas não davam em nada, ou seja, ficavam em águas de bacalhau.

Há séculos que o consumimos, no século XV, já os “portugas” começavam a estabelecer as primeiras colónias de pescadores, na Terra Nova. Cerca de 100 anos depois, em 1521, Mestre Gil Vicente fazia-o figurar no auto “As cortes de Júpiter” e passados mais cem anos, Josefa de Óbidos retratava-o com mestria. Não teria ainda estatuto de comida de primeira. Era o peixe que chegava ao interior do país, para os períodos de abstinência e jejum. O bom sal de Aveiro tinha a capacidade de o conservar. O carapau, a sardinha e o polvo igualmente secos, e o atum de barrica, vindo do reino dos Algarves, não tiveram a mesma difusão que o bacalhau. No século XVIII, vê a sua importância crescer. Em meados dessa centúria chegavam anualmente ao porto de Lisboa 600.000 quintais de bacalhau. No ano de 1901, o célebre livro de receitas “O cozinheiro popular dos pobres e dos ricos” dedicava-lhe 22 receitas, em 1936, Oliveira Bello, na “Culinária Portuguesa” aumentava o número para 48. Hoje atingimos já as 1000 receitas. Também por cá surgiram algumas famosas, é o caso do Bacalhau à Assis, criado na pensão “o Skiador” ou o bacalhau à Faisão a que a tradição popular chamou de bacalhau a mira mortos, criado no Teixoso.

Mas não é só no prato que o bacalhau faz figurão. Ele está presente em canções brejeiras, onde quer alho, ou onde alguém suspira para o cheirar. Nalguns lugares tem direito a julgamento e funeral pelo Carnaval. É claro, manda a boa etiqueta que, como cumprimento, se dê ou aperte o bacalhau. Bem, esta última prática está este ano interdita.

A Noruega ameaçou no passado dia 11 barrar o acesso às embarcações da União Europeia. Más notícias para o bacalhau. Mas afinal estamos próximos do Natal, pela primeira vez, em 800 anos, vamos de novo poder ver a estrela que guiou os Magos. Decerto um sinal de esperança e de que tudo voltará à normalidade, até o bacalhau. Acredito até que à semelhança do Presidente dos EUA, que costuma indultar um Perú no dia de “Ação de Graças”, também Marcelo Rebelo de Sousa irá libertar um bacalhau no Natal.

A todos um Feliz e Santo Natal!

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