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O artífice que do desperdício faz novo

Nas mãos de David Ferreira, nada se perde, tudo se transforma. Nascido há 62 anos em Sobral de São Miguel, Ginjas, como é conhecido, desde criança tinha “o gosto de inventar” e o hábito de dar nova vida a objectos está reflectido na casa em xisto onde habita, construída por si, tal como o mobiliário e todos os elementos decorativos, pouco comuns.

Em David Ferreira, sorriso aberto, pose descontraída, cigarro na mão, boina basca na moleira e camisola estilo hippie vestida, nada é convencional, à semelhança das suas criações, sempre com os elementos da natureza que lhe é próxima e os materiais que rodeiam a terra do xisto muito presentes.

O Ferrolho, café de que é proprietário, é ponto de encontro na aldeia, onde se cruzam gerações. Um espaço peculiar no rés-do-chão de casa, com os bancos feitos com madeira de eucalipto, as mesas de castanho e freixo, os elementos naturais das montanhas à volta gravados nas paredes e o selo da autenticidade que os sobralenses e visitantes lhe reconhecem.

Filho de ferreiro, David Ferreira herdou do pai os conhecimentos para manusear o ferro utilizado para conceber muitas das peças que vai fazendo, mas os materiais utilizados são ilimitados. Tudo pode ser reutilizado e ter uma nova função. Quando caminha, recolhe pedras, madeiras, paus retorcidos. Há muita gente que lhe leva matéria-prima, por serem constantemente surpreendidos pela criatividade de Ginjas.

Das portas aos candeeiros, das varandas ao mobiliário, das gravuras nas paredes aos vitrais, tudo foi feito pelo próprio.

Elementos da natureza são a matéria-prima

A casa onde habita, junto a outras duas que, entretanto, recuperou, onde o xisto salta à vista, é particular, mas tornou-se uma espécie de museu na aldeia. “O que aqui está representa a nossa terra. As profissões, a vida do Sobral está aqui retratada”, considera Daniel, 32 anos, um dos clientes do Ferrolho. Enquanto bebe uma cerveja ao balcão Jorge Sobreiro conta que quando há grupos de turistas que pedem para ver, David Ferreira lhes abre a porta de casa. “Ao ver o que aqui está, dá para ter uma noção do que é o passado da terra”, frisa.

Nada é comum neste espaço. Todas as peças são únicas. De um pau de giesta nasceu uma avestruz. A árvore de missangas levou-lhe 117 horas a concluir, muitas das quais noite dentro, com um copo de whisky ao lado e a música dos muitos vinis da colecção por companhia, da country, jazz e blues aos cantautores portugueses, como são os casos de José Mário Branco, Fausto, Zeca Afonso ou Sérgio Godinho.

Há candeeiros com a cortiça trabalhada, candeeiros feitos com um aglomerado de copos, com taças de resina, um feito com pinhas, outro com nozes pregadas a um tronco de árvore, também um elaborado a partir do rodízio de um moinho. As pedras são aproveitadas para peças decorativas e outras utilitárias. O ferro-velho transfigura-se.

“Eu tenho de estar entretido”, comenta Ginjas, que só lamenta “a trabalheira desgraçada para limpar”. Não há uma única divisão da casa semelhante a outra residência qualquer. “A casa é única. Não há outra igual. É tudo prático, feito à minha maneira”, realça. Até o frigorífico e o esquentador estão personalizados.

 

São muitos os turistas que pedem a David Ferreira para visitar a sua residência.

Pinturas nas paredes com café, ferrugem e ervas

David Ferreira esculpe madeira e dela faz poltronas, mobília e tudo o que a imaginação lhe permite. Pinta telhas e azulejos. Faz miniaturas de casas em xisto. Pinta vitrais. Faz desenhos em vidro, com recurso ao berbequim e a uma fresa. Recuperar, reutilizar, são as palavras de ordem. “Não faço para vender, é por vício meu, para estar entretido. Dou o que faço aos meus irmãos e sobrinhos”, sublinha.

É nos cinzeiros em pedra e em madeira a que deu corpo que apaga os muitos cigarros que fuma. Nas paredes, desde a entrada ao último piso, há gravuras inspiradas na terra do xisto. Ginjas utiliza tintas naturais, à base de cola de carpinteiro, ferrugem retirada da chaminé, erva-dos-cachos-da-índia, café. Uma das paredes retrata a Rota do Sal e os seus protagonistas. Outra tem plasmadas vidas que conheceu, como a malha do centeio ou o moinho, de que os pais viviam. Uma outra parede transformada em tela assinala os diferentes sítios da serra, do Picoto ao Barroco do Muro.

David Ferreira começou a trabalhar aos 14 anos na construção civil. Esteve emigrado em França e na Suíça, onde esteve ligado também à restauração. Regressou há 23 anos à terra natal. Não se acha um artista e garante não fazer nada com perfeição, antes à sua maneira. “O único curso que eu tenho é de ladrilhador”, vinca. Não aprendeu com ninguém. “Vem de mim. De pequenino já tinha um certo jeito para inventar”, salienta o “artesão”, à varanda florida virada para a Ribeira do Porsim, onde manifesta um desejo: “Que nunca ninguém me tire esta vista”.

 

Nenhuma peça é comum em casa de David Ferreira.

 

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